terça-feira, junho 27, 2006

Miséria da Paz


Mesmo faltando-lhe quase todos os dentes, Miséria da Paz era bonita. Uma beleza matuta, envergonhada, com cara de riacho e cheiro de roupa quarando ao sol. Não era de muitas palavras e olhava para o mundo pedindo licença. Como se os olhos incomodassem. Não! Como se ela mesma fosse um incômodo que incomodava sem saber porquê. Assim, incomodada por incomodar, a ela só restava um enorme par de olhos que olhavam sem olhar. Olhava de beira, margeando o visível, esgueirando o foco e procurando o chão.

Chegou como a miséria costuma chegar: invisível, anônima, desterrada. Tocou a campainha, entrou e foi logo lavando a louça e limpando as janelas. Não foi preciso ninguém mandar. Uma empregada exemplar. Ninguém lhe perguntou o sobrenome e o nome foi só pra constar. Depois arrumou as tralhas no quartinho dos fundos, pendurou na parede o terço e uma fotografia de sabe-se lá quem, e encolheu-se na cama. Dormiu de banda, retorcida como um galho torto, uma pedra lascada, um cotoco de gente. Sonhou com o sertão, com a terra dos olhos que olham sem olhar. Se fosse eu ou você a sonhar com esqueletos barrigudos e cadávares embalados em redes, certamente seria um pesadelo, mas pra Miséria era sonho.

Acordou antes do sol acordar. Pisou no chão com cuidado, temendo que o chão fosse se incomodar. Arrastou-se até a cozinha e preparou o café. Não o tomou. Esperou que todos acordassem e deixassem o resto. Que para Miséria não era resto, era o que tinha pra comer neste mundo de Deus. Os patrões não gostaram. Aguado demais! Abaixou a cabeça e sorriu. Miséria sorria quando era pra chorar. Voltou ao fogão e fez tudo de novo, sem reclamar. Uma empregada exemplar!

Vez por outra conversava com as paredes, contava histórias dos doze irmãos que ficaram no norte, lá pelas bandas da Paraíba. Narrava histórias de defuntos e mulas que soltavam fogo pelas ventas. De si, pouco falava. Não por não ter o que contar e sim por não querer incomodar. E se por acaso as paredes insistissem, ela respondia: "Que vida pode ter quem nem chegou a nascer?" E de nada adiantava tentar convencê-la deste engano, pois de tanto conviver com a morte, defunto, mula sem cabeça, cadáver barrigudo, ela acabou por achar que o mundo era dividido entre os mortos e os nascidos. E se fosse eu ou você a elaborar este pensamento, seria metafísica, mas para Miséria era fado mesmo!

Um dia Miséria da Paz procurou as paredes, mais animada do que de costume. Os olhos brilhavam e olhavam. As paredes perguntaram pelo motivo de tanta alegria. Miséria respondeu que ouvira dizer que o Salvador chegaria . Acostumadas com as histórias das almas penadas, as paredes desconfiaram que o advento do Salvador era coisa da sua imaginação. Mas não era! O filho do patrão, um sujeito metido a marxista, tiete de Fidel e Che, ia voltar de uma excursão lá pelos confins da Europa. Miséria pouco sabia de Marx, mas pelo que ouvia por detrás das portas, concluiu que o moço era o anjo anunciado por Conselheiro. O filho do patrão só podia ser o homem que ia fazer o mar virar sertão. De nada adiantou preveni-la de uma provável decepção. Miséria cismou que o rapaz era o anjo da sua tão esperada salvação.

Até que chegou o dia do advento do Salvador. Chegou empinado, ereto como um bambu, não olhou para Miséria e nem lhe deu bom-dia. Passou por ela sem vê-la, deixando um rastro gelado e uma catinga de senhor de engenho. Miséria conhecia o cheiro e sabia que era o bafo do Chifrudo. Benzeu-se três vezes e jogou sal pelas costas. O Salvador era o Tinhoso! Padre Cicero já havia avisado...

O tempo passou com Miséria evitando ser olhada pelo Rabudo. Tremia de medo quando ele parava do seu lado para pedir votos e prometer fartura. Um dia o medo foi tanto que chegou até a ver o rabo do Capeta. Pensou em ir embora, mas lembrou que não tinha pra onde ir. Foi ficando. Ela e o Tinhoso. O Tinhoso e Ela. De noite, rezava pra Padre Cicero, Conselheiro e São Marx (nunca consegui convencê-la de que Marx tinha horror às santidades). Depois agarrava o terço, fechava os olhos e lá se ia pras bandas dos mortos, dos não nascidos...

Um dia, o Salvador - que de salvação só conhecia a de si mesmo e a de sua carteira - acusou-a de roubar uma toalha de banho. Vixe! A toalha que secou os pêlos do Belzebu? A barriga da Miséria embrulhou e os cabelos arrepiaram. Mas ninguém percebeu. Foi mandada pro olho da rua no meio da noite. Não tinha nenhum lugar para ir. Saiu carregando a trouxa, um disco do Roberto Carlos e um porta-retrato com uma foto de São Marx. Nunca mais foi vista. Afinal, ela nem tinha nascido!

O Salvador tinhoso? Ah!...esse continua por aí, usando a miséria como cabo eleitoral e como comida para sua mesa farta...

Marcia Frazão

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