Atenção. Eles são capazes de qualquer coisa. De azedar o leite a raptar crianças que teimam em não dormir; de tirar gente do rumo de casa a roubar presentes. Quebram pontas de agulha, desferem coices, queimam os desavisados. Tem de todo o tipo, pra todo gosto e de todos os cantos. O Cabeça de Guia vem do Piauí; o Negrinho do Pastoreio, do Rio Grande do Sul; a Cobra Norato, do Pará; o Tibanaré, do Mato Grosso. Tem uns que não se sabe nem de onde vêm. A quadrilha é tão extensa que não caberia num almanaque dedicado todinho a ela.
Ao longo do tempo, perseguida, essa turma acabou se refugiando longe das histórias que contamos para as crianças. Em 1947, Câmara Cascudo já alertava para o risco de extinção. Em Geografia dos Mitos Brasileiros, para garantir-lhes sobrevida, resolveu prendê-los num campo, bem pobre e curto, mas enfim um campinho onde poderão ser vistos em maior número que no meio das matas, dos capoeirões e das várzeas brasileiras, dos rios, dos ares e das montanhas da Pátria. Fez efeito. Hoje, parte fundamental dos registros sobre nossa riqueza mitológica está nas páginas do patrono deste almanaque. E de lá, vira-e-mexe, saltam de volta para o terreno da imaginação dos leitores.
MAL NECESSÁRIO
Segundo o crítico literário Fábio Lucas, os mitos brasileiros servem de referência para que nos identifiquemos enquanto grupo social. "Se alguém fala na Iara, por exemplo, você sabe que é brasileiro. A nação identifica esses símbolos." No interior do País, lendas viram romances e cantorias em feiras. "Remetem a tempos fabulosos, em que o homem era um prolongamento da natureza, as árvores e os animais falavam", completa.
Este atenuante é válido. Mas como justificar o medo que instilam nas pessoas, dos senis aos mais jovens? O psicanalista Mário Corso, no livro Monstruário, defende que essa sensação colabora para nosso bem-estar: "É ótimo para as crianças. É mais fácil saber do que se tem medo. Ruim com eles, pior sem". Para Mário, na cultura ocidental, Deus e o Diabo travam batalha sem fim: enquanto um organiza, o outro bagunça o mundo. E com os dois em baixa atualmente, os entes fantasiosos cumprem bem o papel. "Precisamos desses monstros, pois sozinhos não conseguimos explicar o mal, por isso criamos símbolos para sintetizá-los". Que tenha início então o julgamento.
Saci: Já foi tema de livros, filmes e programas de tevê. Há três tipos: o Saci Trique, o Saçurá e o Pererê. Os dois primeiros são coadjuvantes, mas o último, com vocação para a liderança, é altamente perigoso. Delinquente de uma perna só, com capuz vermelho e cachimbo na boca, é acusado de amarrar o rabo de cavalos, atormentar cachorros e atropelas galinhas. Na cozinha, estraga a sopa, azeda o leite, além de queimar a comida. Apronta também com as costureiras, derrubando dedais, quebrando a ponta de agulhas, escondendo tesouras e embaraçando novelos. Deixa os pregos de ponta pra cima. Apesar da brandura de suas malvadezas, é réu reincidente. Prova disso é que Monteiro Lobato, já em 1918, compilou num inquérito as acusações que pesavam sobre o malandrinho, reunindo depoimentos de crianças de todo o Brasil - hoje, seguramente, todas avós, bisavós e tataravós. Acusação: Crime de injúria, caracterizado por ferir a honra pessoal da vítima. A ação penal prossegue mediante representação. Detenção de um a seis meses, ou multa, caso não haja acusações de maltrato a animais.
Mula-sem-cabeça: Alguns a conhecem como Burrinha de Padre. originalmente, era uma mulher. Desavisada, envolveu-se pecaminosamente com um padre. Daí em diante, toda a noite de quinta-feira se transforma em uma mula incrivelmente veloz, com uma chama no lugar da cabeça. De longe se ouve seu galope fantástico e seu cavalgar pesado, barulhento. Se calha de aparecer alguém atrás, desfere coices que cortam como navalhas. Toda a gente se assusta, bem como os bichos. Só quando o galo canta a terceira vez na manhã seguinte, volta à forma humana. Pela história de mulher sofrida, e pelo fato de já estar pagando por seus pecados, terá sua pena abrandada. Acusação: Lesão corporal. Pena de três meses a um ano de detenção. Cabível progressão de pena. O réu pode responder a processo em liberdade.
MBoitatá: Cobra de fogo, tem grandes e assustadores olhos. Vive na água, mas é na terra que persegue suas vítimas, com o pretexto de proteger as matas e os animais. Diz que só ataca quem maltrata a natureza. Mas há evidências em contrário: o jesuíta José de Anchieta, em 1560, relatou o caso da labareda viva que perseguia gratuitamente as pessoas. O que se sabe de concreto é que suas vítimas morrem, ou de medo ou queimadas. E que o algoz camufla-se atrás de vários pseudônimos: Boitatá, Bitatá, Batatá, Batatão e Baetatá.Um alerta. Se encontrar MBoitatá por aí, há duas saídas: ou ficar parado, estático mesmo, de olhos fechados e sem respirar; ou, caso você esteja sobre um rápido alazão, trate de fazer uma armadilha com uma corda. Quando alcançar boa velocidade, atire a corda com força contra uma árvore. MBoitatá se espatifará. mas não hesite: logo ela se reagrupa. Acusação: Falsidade ideológica: pena de reclusão de um a cinco anos e multa. Pode aguardar julgamento em liberdade. E também homicídio doloso privilegiado, por motivo de relevante valor social: pena mínima (seis anos).
Homem do Saco: Ser urbano, esse sujeito aterrorizador caminha pelas ruas com um saco nas costas. Se uma criança sai de casa sozinha, o elemento rapta-a de prontidão. Apesar de preferir crianças desobedientes, todas correm perigo. Uma vez dentro do saco, o apreendido descobre o que o homem carrega: mais crianças. Uma porção delas. É uma viagem só de ida. O modernista Menotti Del Picchia, em seu conto Salomé, relata a existência dessa figura, que se escondia sob o pseudônimo de Tinoco. Dizem que o Homem do Saco começou suas atividades ilícitas na Inglaterra, onde pais malvados amarravam fitas vermelhas nos pés da cama, indicando as crianças que poderiam ser levadas. Há quem diga que isso tudo é balela; que são ameaças dos pais para que seus filhos não saiam de casa inadvertidamente. Pelo sim, pelo não, cara criança, se vir um homem na rua com as características apontadas acima, volte correndo para dentro de casa. Acusação: Cárcere privado. Reclusão de até três anos. Caso se verifique a participação dos pais, agravamento da pena por formação de quadrilha.
Lobisomem: Criminoso astuto, começou suas atividades sabe-se lá onde. Para alguns, veio da Grécia, onde Licaon, rei da Arcádia, teria servido carne humana a Zeus. Furioso, o deus supremo o teria transformado em lobo. Fugiu então para Roma. Perambulou por séculos pela Europa. Depois de muito fugir, o maldito veio parar no Brasil. Dizem que se esconde hoje na paulista Joanópolis, no sopé da Serra da Mantiqueira, embora haja indícios que não seja um, mas muitos. Corre à boca pequena que leva vida dupla: de dia age naturalmente, sem despertar suspeitas. Mas em noite de Lua Cheia transforma-se em lobo. Vagando sobre quatro patas, se não mata suas vítimas, transforma-as em lobisomem. No dia seguinte, o bandido acorda com suas roupas rasgadas, cansado, apático e amarelo. A ciência ainda não descobriu cura para readaptar esse tipo à sociedade. Armas comuns são inúteis. Só há duas maneiras de contê-lo, dizem: tiro de bala de prata ou com projétil revestido com cera de vela de altar, no qual celebraram-se três missas natalinas. Acusação: Homicídio qualificado praticado por motivo fútil: vai a júri popular. Crime hediondo. Pena de 12 a 30 anos. Caso fosse réu primário, poderia cumprir parte da pena em regime aberto. Como é estrangeiro clandestino, está sujeiro a extradição sumária.
Cuca: Também conhecida como Coca, é velha, feia e desgrenhada. Aparece de noite para levar embora crianças inquietas, que teimam em não dormir quando os pais mandam. Não por acaso, existe uma canção de ninar (na verdade um aviso para os mais levado): Nana, neném, que a Cuca vem pegar / Papai foi pra roça, mamãe pro cafezal. Articulou uma quadrilha que possibilita agir simultaneamente em várias regiões do País, raptando crianças sem deixar rastro. Em diversas partes do mundo sabe-se de sua existência. Recentemente, passou por transformações tão radicais que testemunhas relataram parecer-se mais com um dragão, ou um jacaré: tem o corpo repleto de escamas, uma boca enorme e uma cabeleira vermelha (não se sabe se usa tintura). Acusação: Formação de quadrilha. Artigo 288 do Código Penal. Pena de um a três anos. Cárcere privado: até três anos de reclusão. Reincidente, circunstância agravante que aumenta o tempo de pena. Para diminuí-la, a defesa pode alegar crime continuado (dois ou mais crimes da mesma espécie).
Ouvidas as testemunhas, acusações e defesas, resolve-se livrar a barra dos acusados. A favor deles pesam os seguintes fatos: aguçam a curiosidade, revelam sobre nossa identidade, estimulam a criatividade, engrossam com muita sustança nosso caldo cultural. Que venham novos acusados, que se somem mais relatos, que se crie, no fértil terreno das idéias, tantos campos quanto puderem abrigar nossas lendas e mitos. E nem poderia mesmo ser diferente. Eles se multiplicam, estão em qualquer lugar, surgem a qualquer hora em que risque a fagulha de novas histórias. Afinal, haverá cadeia capaz de aprisionar a imaginação?