Em uma floresta no sul da Índia habitava uma grande população de sábios hereges. Então Shiva resolveu passar por lá, afim de contrariá-los, e com ele foi Vishnu, disfarçado como uma linda mulher. O que aconteceu primeiro foi uma imensa confusão; os sábios começaram a brigar entre si. Mas logo se uniram para destruir Shiva, através de encantamentos... Humpf, mal sabiam o que estavam fazendo. Então fizeram um fogo sacrificial, e dele criaram um tigre ferocíssimo, que partiu para cima do Iogue. Mas sorrindo gentilmente, Shiva o dominou e, com a unha de seu dedo mindinho, arrancou sua pele e a amarrou na cintura, como se fosse um pedaço de seda. Com aquela cara-de-tacho, os sábios renovaram suas oferendas e produziram uma serpente monstruosa. Shiva olhou para aquilo e, com a maior tranqüilidade do mundo, dominou-a, colocando-a em seu pescoço como se vestisse uma guirlanda. Então ele começou a dançar. Numa última e desesperada tentativa, os sábios enviaram sobre ele um último monstro, na forma de um anão maligno. O deus pressionou-o sob a ponta de seu pé, e quebrou as costas da criatura, que se retorceu no solo. E então, com seu último inimigo prostrado, Shiva parou de dançar.
Essa é a representação de Shiva como Nataraja, o rei dos dançarinos. Mas para entender o conceito do Nataraja, é preciso compreender a dança em si. Assim como a Ioga, a dança nos leva ao transe, ao êxtase, à vivência do divino, à compreensão da própria natureza e à ligação com a essência divina. Por isso, na Índia, a dança conviveu lado a lado com as severas práticas ascéticas e meditação (jejuns, exercícios respiratórios, introversão absoluta). O que explica o fato de Shiva, que é o Grande Iogue dos deuses, ser também o senhor da dança.
A dança é um ato criador. A dança de guerra converte os homens em guerreiros, despertando suas virtudes bélicas. A dança da caçada antecipa o êxito da caça, transformando os participantes em infalíveis caçadores. Para despertar os poderes da fecundidade, os dançarinos imitam os deuses da vegetação, da sexualidade e da chuva. Dessa forma, ela tem uma função cosmogônica, ou seja, desperta as energias que estão adormecidas dentro de nós para que dêem forma ao universo. Shiva é o Dançarino cósmico, incorpora em si mesmo a energia eterna que torna manifesta. As forças que reúne e projeta são os poderes da evolução, preservação e dissolução do universo. A natureza e todas as criaturas são o efeito dessa dança eterna.
A iconografia da imagem do Nataraja é repleta de significados. Sua mão direita superior leva um pequeno tambor, tipo uma ampulheta, que serve para a marcação do ritmo de sua dança. Ele é o som, veículo da fala e portador da revelação, tradição, encantamento, magia e verdade divina. Na Índia, o som é associado ao éter, o primeiro dos cinco elementos. Dele emanaram ar, fogo, água e terra. Por isso, som e éter significam o verdadeiro momento da criação. Há também uma lenda que diz que quando Shiva concedeu a sabedoria ao ignorante Panini (hoje reconhecido como um grande conhecedor da gramática sânscrita), o som do tambor encapsulava a totalidade da gramática sânscrita. Tanto que o primeiro verso da gramática de Panini é chamado de Shiva Sutra. O tambor-ampulheta também representa os princípios vitais do masculino e do feminino. Dois triângulos penetram a si mesmos para formar um hexágono e, quando se partem, o universo também se dissolve.
No lado oposto, a mão esquerda superior (cujos dedos formam uma meia-lua), mostra na palma uma língua de fogo. Nós sabemos que o fogo é o elemento da destruição do mundo. De acordo com a mitologia hindu, no término do Kali yuga (era na qual vivemos), o fogo aniquilará o corpo da criação, sendo ele próprio apagado pelo oceano do vazio. Dessa maneira as mãos se equilibram, som/fogo, criação/destruição, dando o balanço da dança.
A segunda mão direita faz o gesto abhaya-mudra - “não temas”, que confere proteção e paz. O dançarino é como um pai que nos embala.
A outra mão esquerda aponta para baixo, para o pé esquerdo erguido. Este é o pé que significa a liberação, onde encontramos refúgio e salvação. Para que alcancemos a união com o Absoluto, ele precisa ser venerado. O que mais me impressiona, e que eu particularmente acho interessantíssimo é que a mão que aponta para o pé tem uma pose que imita a tromba de um elefante. Esse gesto é conhecido como gaja-hasta-mudra, e nos lembra o filho de Shiva, Ganesha, o “Removedor de Obstáculos”.
O deus dança sobre o corpo prostrado do anão-demônio, de nome Apasmara Purusa. Purusa significa Homem e apasmara quer dizer Esquecimento ou Imprudência, por isso o anão simboliza a cegueira da vida, a ignorância humana. Toda a energia criativa só é possível quando o peso da inércia é superado e reprimido. O Dançarino nos fala para deixar de lado a complacência e reunirmos nossos atos.
O palco onde o deus dança é um anel de fogo e luz (prabha-mandala) que o circunda. Ele significa os processos vitais do universo e de suas criaturas. É também a energia da sabedoria, a luz transcendental do conhecimento da verdade, cuja dança emana da personificação do todo. A imagem repousa num pedestal de lótus, que aloca o universo no coração e consciência de cada um de nós. É provável que a origem do anel flamejante se refira ao aspecto destrutivo de Shiva-Rudra; mas a destruição, em Shiva, é idêntica à liberação.
O dançarino personifica e manifesta a energia eterna em suas cinco atividades (pañca-kriya). A primeira é a Criação (sristi), o derramar ou expandir. Depois a Preservação (sthiti), a duração. Em terceiro vem a Destruição (samhara), o retorno ou reabsorção, seguido por Encobrimento (tiro-bhava), o velar do verdadeiro ser por trás das vestes e máscaras das aparências, da indiferença, da manifestação de Maya. Por último a graça (anugraha) - a aceitação do devoto, o reconhecimento do iogue, a concessão da paz através de uma manifestação reveladora. Essa revelação é não apenas simultânea, como também seqüencial. Todas as cinco atividades são manifestadas em seqüência, simultaneamente à pulsação de cada momento, através das transformações temporais.
O movimento incessante e ondulante dos membros de Shiva Nataraja faz um contraste com a estabilidade da cabeça e a imobilidade do semblante de máscara. Shiva é Kala, “O Negro”, “O Tempo”; mas é também Maha Kala, “O Grande Tempo”, “A Eternidade”. Seus gestos precipitam a ilusão cósmica, seus braços e pernas velozes, o ondular do torso produzem a contínua criação-destruição do universo, a morte contrabalançando de modo preciso o nascimento, a aniquilação como fim de cada criação. A coreografia é o redemoinho do tempo. O ritmo cíclico é marcado pelas batidas dos pés do Mestre. Mas a face mantém-se calma e soberana. Há uma tensão entre a dança e a serenidade de seu semblante: é a tensão entre a eternidade e o tempo. Nós temos a tendência de nos apegarmos à dualidade, com ansiedade e prazer. Mas a dualidade na verdade não existe. A ignorância, a paixão, o egoísmo, desintegram a experiência da essência suprema, na ilusão de um mundo de existências individuais. Este mundo, entretanto, EXISTE, apesar de toda sua fluidez, e jamais terá fim.
O cabelo do Shiva é um capítulo à parte. Eles são longos e revoltos, metade soltos e a outra parte encontra-se presa, como se fosse uma pirâmide. Uma energia vital sobrenatural, correspondente ao poder da magia, reside nesses cabelos enredados que a tesoura jamais tocou. Eles se expandem, formando duas asas à esquerda e direita, uma aura em suas ondas mágicas, a exuberância da vida sensorial.
Sabemos que grande parte do charme feminino está na fragrância, no brilho de uma linda cabeleira. É o apelo sensual do Eterno Feminino, poder criador. Por isso, quem quer renunciar às forças geradoras do reino animal, indo contra os princípios procriadores da vida, do sexo, da terra e da natureza, para ingressar na via espiritual do ascetismo absoluto deve raspar os cabelos. Isso é uma representação de um ancião, cujos cabelos já caíram, e que já não é mais parte da cadeia de geração.
Já o Shiva é duas coisas opostas: o asceta arquetípico e o dançarino arquetípico. Por um lado ele é a serenidade total, a calma absorvida em si, absorto no vazio do Absoluto, onde todas as distinções se fundem e dissolvem, todas as tensões estão em repouso. Mas por outro lado ele é a atividade total, a energia da vida, frenética e lúdica.
O dançarino representa não apenas um evento qualquer de uma deidade local, mas uma visão universal onde as forças da natureza e as aspirações e limitações do homem confrontam-se e são unidas. Se alguém tivesse que escolher um único ícone para representar o extraordinariamente rico e complexo patrimônio cultural da Inda, o Shiva Nataraja poderia ser o candidato mais indicado.
sábado, outubro 20, 2007
O DANÇARINO
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