Quando os deuses celestiais caíram exauridos após a batalha com os demônios o rei Mahishasura com sua natureza bondosa aproveitou a oportunidade para reunir um grande exercito e se autodeclarar o senhor dos céus, o governante do universo.
Essa blasfêmia chegou aos ouvidos de Vishnu que muito zangado emitiu uma forte luz de sua testa, Shiva também se zangou e ao descender de seu estado sublime de meditação emitiu um forte raio de luz ofuscante na mesma direção do raio de Vishnu. Brahma, Indra e outros deuses poderosos fizeram o mesmo emitindo raios de luz e todos esses raios se juntaram em um mesmo ponto e aos poucos a concentração abrasante das luzes assumiu a forma de uma mulher. A luz de Shiva formou o seu rosto, de Yama seu cabelo, de Vishnu seus braços, de Chandra seus seios, de Indra sua cintura, de Varuna suas coxas, da Terra seus quadris, de Brahma seus pés, de Agni, o deus do fogo, os Seus três olhos. Assim todos os deuses contribuíram com seus poderes para manifestar a auspiciosa Devi, a grande deusa Mãe. (o nome Devi deriva-se da raiz sânscrita divi que significa brilhar, assim Devi significa a reluzente).
Os imortais fizerem suas preces e a adoraram com louvores, ornamentos e armas. Shiva lhe deu um tridente, com o seu próprio. Vishnu um disco poderoso. Indra um raio. Surya, o deus do sol, lhe concedeu raios em todos os poros de sua pele e Varuna o deus do oceano, lhe presenteou com brincos, braceletes, e uma coroa de jóias divina e uma guirlanda de lótus que jamais murcha. Os deuses gritaram em uníssono, que a vitória seja da Mãe. No momento que os batalhões de demônios se aproximavam rufando seus tambores, em meio aos gritos de batalha, e ao soar das conchas. Devi era de uma estatura enorme e os demônios marchavam diretamente para Ela e ao se aproximarem atacaram-na de todos os lados, com flechas, macas, espadas e lanças. Devi emitia um som ensurdecedor urrando e rindo um sorriso aterrador e desafiante. Os dez braços dEla giravam de uma forma alternada esmagando assim as armas dos demônios e os arremessando contra seus pares. De uma só vez Ela levantava dezenas de demônios e os matava com Sua espada. Outros Ela nem se dignava levantar, paralizando-os com o tremendo barulho de Seus sinos esmagando-os após com sua maça. Quando Ela lutou com o demônio Raktabhija a terrível Mãe deusa se defrontou com vários problemas. Esse demônio tinha poderes que lhe permitiam criar novos demônios a partir de seu próprio sangue. Assim quando a deusa o feria cada gota de sangue que pingava no chão imediatamente brotava outro demônio plenamente desenvolvido. Mas no final a Mãe o sobrepujou, levantando Raktabhija e evitando que as gotas de sangue caíssem no chão, bebendo seu sangue. Esmagou-o entre seus dentes e o engoliu. Houve outro demônio que tentou sobrepujar a deusa com seus poderes mágicos. Sempre que estava ameaçado ele mudava sua forma e sua cor, porem quem pode escapar da grande Mãe? Pego pelo laço dEla cuspindo sangue o demônio foi capturado pela Devi e como uma criança que puxa um trem de brinquedo Ela o arrastou pelo campo de batalha onde já havia muitos e muitos demônios partidos ao meio pela afiada lâmina de sua espada. Agarrando alguns elefantes com uma mão, Devi jogava-os para dentro de sua boca juntamente com os demônios condutores. E assim Ela furiosamente os esmagava com seus dentes. Ela agarrou um dos demônios pelo cabelo e outro pelo pescoço, o primeiro era esmagado pelo peso de Seu pé e o outro com o Seu corpo. A presença devastadora da Mãe preenchia até mesmo as alturas do céu. Nuvens negras cobriam o local enquanto relâmpagos atemorizantes iluminavam as formas horripilantes em terra. Lá se via milhares de demônios, sem braços, sem pernas, dilacerados e cortados ao meio.
Quando Mahishasura, o rei dos demônios, viu que seu exército havia sido devastado pelos golpes da assombrosa Deusa Mãe, ele foi tomado por uma fúria devastadora. Seu corpo se expandiu assumindo a forma de um búfalo gigantesco e aterrador. Ele estava envenenado com sua própria força e valor e por isso rugia de maneira desafiadora e assim investiu contra Devi.
A Deusa gritou, ó touro você pode berrar agora, mas quando Eu o destruir, em breve, serão os deuses que irão bradar em vez de você. A terra começou a tremer com as batidas dos pés da Deusa. Mahishasura lutava com todas suas forcas e poder, mas não conseguia sobrepujar Devi. Por isso ao final ele apelou ao senso de justiça dEla dizendo que não era justo ele estar lutando com alguém tão mais poderosa. Ele alegava que Ela foi ajudada por inúmeras deusas como Durga, Kali, Chamunda, Ambhika e outros enquanto ele, Mahishasura estava só na batalha. Ela disse, eu estou sozinha, você esta vendo alguém ao meu lado? Você não percebe, ó vilão que essas deusas são apenas diferentes aspectos do meu poder e que depois retornarão a Mim. Aqui estou apenas eu mesma. Não recue, defenda-se.
E assim a selvagem batalha continuou e o demônio gigante atacou a deusa Mãe com chuvas de flechas. Ele girava discos, e brandia a maça e o bastão. Mas tudo era em vão. Ele foi morto com a lança da Devi. Assim liberando aquela alma de seu corpo e mente de natureza maligna.
As nuvens de poeira carregavam o forte odor de carne putrefata e pele chamuscadas para o horizonte que se mostrava com um forte tom vermelho sangue. Os demônios estavam mortos e o sangue deles se acumulava em poças em volta das carcaças dos elefantes e dos cavalos. Ainda insistiam em lutar contra Devi apenas alguns demônios sem cabeça. A batalha havia terminado bem como os estridentes gritos, agora se ouviam apenas os uivos dos chacais e das hienas. Nada mais havia para se matar, porém a Mãe em sua forma de Kali totalmente intoxicada pelo sangue que bebera continuava a carnificina esmagando e dilacerando os corpos já mortos dos demônios. Assim a celebração que já havia começado entre os deuses ao ver a cólera da Mãe, rapidamente foi se transformando em medo. Quem poderia parar a sua fúria? Apenas o grande Deus Shiva poderia executar tal tarefa. Untado de cinzas, o terceiro deus da trindade hindu, partiu para o campo de batalha e ali se deitou imóvel entre os cadáveres enquanto ao longe os deuses o observavam. Devi em sua fúria intoxicada andava em ziguezague entre os corpos e de repente ela se viu pisando em um belo corpo masculino nu e untado com cinzas brancas. Cheia de admiração Ela ficou paralisada por um instante olhando diretamente para os olhos dEle, Seu marido Shiva. Quando Ela percebeu que tocava o corpo de seu marido divino com seus pés, um ato de desrespeito impensável para uma mulher hindu, Kali estirou Sua língua envergonhada e isso pôs fim a destruição que Ela executava.
A antiga lenda de Devi, a grande deusa Mãe, tem passado de geração a geração entre os hindus que é proveniente de um livro sagrado dos shaktas tantras chamado Chandi. Embora essa narração sanguinária e sentimental seja alegórica, devemos considerar qual seu significado intrínseco para a sociedade hindu de hoje. Do ponto de vista religioso e social essa lenda reafirma o poder protetor do arquétipo da Mãe que é parte integral da vida familiar hindu. No ocidente, a mulher de família é observada primordialmente no seu papel de esposa, enquanto na Índia a mulher sempre é vista como Mãe. Mesmo a mulher solteira, sem filhos geralmente é chamada de mataji (Mãe). Isso é um gesto de respeito porque os hindus consideram a posição da Mãe como sendo suprema.
Na Índia, especialmente na Bengala, adora-se a grande Mãe com cerimônias de grande esplendor. Uma vez por ano durante o festival de outono chamado Durga puja é reencenada a história da estupenda protetora e assim juntam-se lado a lado intelectuais e analfabetos para adorar a Mãe nos templos, nos lares e nos pandals que se montam nas ruas. A grande Mãe abençoa esses esforços na forma da certeza de que todo ano o bem sempre Irá sobrepujar o mal.
Do ponto de vista filosófico, essa lenda é uma representação alegórica da guerra constante que acontece dentro de todos nós, ou seja, a batalha entre a nossa natureza divina contra a demoníaca. Na lenda da deusa Mãe cada uma de nossas paixões e vícios tem o seu demônio representativo, por exemplo, Sumbha é o demônio que corporifica a luxúria, Nisumbha a ambição e Mahisasura a ira.
Um famoso erudito indiano Sashi Bushan Das Gupta escreveu um artigo intitulado "Evolução da Adoração a Mãe na Índia". Ele disse: "Sempre que nossas paixões se vêem em perigo de serem erradicas ou anuladas, elas mudam de forma e cor e tentam escapar disfarçadas. Isso está bem ilustrado na história de alguns dos demônios que mudam de forma quando se defrontam com Shakti, poder divino. O fato é que essas nossas paixões e instintos têm raízes tão profundas em nós que na maioria das vezes parecem ser indestrutíveis, ou seja, ao pensarmos que acabamos com um de imediato vem outro substituir. Vemos isso bem ilustrado na luta da deusa com o demônio Raktabija que para cada gota de sangue caída ao chão brotava um outro demônio revigorado e feroz. É o despertar da Mãe dentro de nós ou seja termos plena consciência do poder divino trabalhando em nós que torna o homem forte e dotado do imenso poder de Deus. (Grandes mulheres da Índia pg. 80, por Svami Madhavananda e Ramesi Chandra)"
Alguns hindus falam da grande Mãe com a veemência de um filho que ameaça outra criança ao disputarem um brinquedo: "A minha Mãe vai te castigar se você não der isso para mim." Essa forte crença na Deusa que cuida das necessidades terrenas e espirituais parece ser infantil para os que vivem no mundo dos adultos dominados pela razão. Porém, se perscrutarmos com cuidado as camadas construídas pelos valores ditados pela sociedade, a maioria de nós concordará que em algum lugar no fundo de nossa alma existe uma vereda reconfortante reservada para nossa Mãe terrena bem como para nossa Mãe arquétipo. Muitos povos na história da humanidade depositaram sua crença no poder da Mãe deusa como sendo a força diretriz do universo. Svami Vivekananda ficou famoso no ocidente ao ensinar a forma mais elevada do Vedanta aham brahmasmi (Eu sou Brahmam, Eu sou Deus) é um exemplo. Não preste reverência a nenhum outro Deus exceto ao Eu que está dentro de você. Porém mesmo Svami Vivekananda em seu extremo racionalismo teve que reconhecer a Mãe Kali. Ele falou para alguns devotos de seu circulo intimo sobre sua paixão intima pela Mãe divina. O que se segue é uma transcrição de uma palestra que Svami Vivekananda proferiu para um pequeno grupo em um chalé no Thousand Island Park: "A Mãe é a primeira manifestação de poder e se considera como o ideal superior ao pai. O nome da Mãe traz a idéia de shakti, energia divina e onipotência. Para o recém nascido sua Mãe tem todo o poder e é capaz de fazer qualquer coisa. A Mãe divina é o kundalini que está adormecido dentro de nós, se não a adoramos jamais iremos nos conhecer. Os atributos da Mãe divina é misericórdia plena, poder total, e onipresença. Ela é a soma total da energia no universo. Toda e qualquer manifestação de poder no universo provém da Mãe. Ela é vida, inteligência, amor. Ela está no universo ainda que separada dele. Ela é uma pessoa que pode ser vista e conhecida. Da mesma forma que Shri Ramakrishna a viu e a conheceu. Estabelecidos na idéia dessa Mãe, qualquer coisa nos é possível. Ela responde imediatamente a nossas preces. Ela pode se mostrar a nós em qualquer forma a qualquer momento. A Mãe divina pode ter forma, rupa, e nome, (nama), ou ainda ter nome sem a forma. E a medida que nós a adoramos em seus diferentes aspectos podemos nos elevar de ser puro, ou seja sem nome nem forma... Um pedaço da Mãe, uma gota foi Krishna, outra foi Buda, outra foi Cristo. Adoração mesmo de uma centelha da Mãe no nosso lar terreno levanos a grandeza. Adore a Ela se você deseja amor e sabedoria. (Spirit Talks por Svami Vivekananda, pg. 48-49)"
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