quinta-feira, abril 26, 2007
Adoração à Mãe
Swami Vivekananda (Obras Completas – Vol. VI)
Os dois fatores conjuntos de percepção dos quais nós nunca conseguimos nos livrar são a felicidade e a infelicidade – as coisas que nos trazem dor também nos trazem o prazer. O nosso mundo é feito dessas duas coisas. Nós não podemos nos livrar delas; elas estão presentes no pulsar da vida. O mundo está ocupado tentando reconciliar esses opostos e os sábios tentando achar a solução dessa mistura dos opostos. O escaldante calor da dor é interrompido por breves descansos, os débeis raios de luz cortam a escuridão em flashes intermitentes apenas para realçar a profunda escuridão.
As crianças nascem otimistas, mas o resto da vida mostra-se uma contínua desilusão; sequer um ideal pode ser completamente alcançado, a sede mal pode ser completamente mitigada. Dessa forma se continua na busca da solução para esse enigma, e a religião assumiu para si essa tarefa.
Nas religiões dualistas, entre os persas, havia um Deus e um Satã. E isso, através dos judeus se espalhou por toda a Europa e América. Essa era uma hipótese que funcionava há milhares de anos atrás; mas agora nós sabemos, ela não é sustentável. Não existe nada absolutamente bom ou ruim; uma coisa é boa para uma pessoa e ruim para outra; o mal hoje, o bem amanhã e vice-versa....
No princípio Deus era, é claro, o Deus de um clã, então Ele se tornou o Deus dos deuses. Com os antigos egípcios e os babilônios essa idéia (dessa dualidade Deus/Satã) era aplicada de forma muito prática. O Moloch deles se tornou o Deus dos deuses e os deuses capturados eram forçados a prestar reverência em Seu templo.
Ainda assim o enigma continua: Quem é responsável por esse mal? Muitos esperam o impossível de que tudo é bom e que somos nós que não entendemos. Nos agarramos às migalhas enquanto enterramos nossas cabeças na areia. Mas ainda assim todos nós seguimos a moralidade que tem como âmago o sacrifício – não eu mas Vós. E ainda assim, como tudo isso se choca com a idéia de um grande e bom Deus do universo! Ele é tão egoísta, a pessoa mais vingativa que conhecemos, com suas pragas, a fome e a guerra!
Todos nós devemos ter experiências nesta vida. Podemos tentar fugir das experiências amargas, mas mais cedo ou mais tarde elas nos alcançam. E eu tenho pena do homem que não encara o todo.
O Manu Deva dos Vedas na Pérsia foi transformado em Arimã. A explicação mitológica dessa questão estava morta, mas a pergunta permaneceu. E não houve resposta. Ficou sem solução.
Mas havia uma outra idéia nos antigos hinos védicos à Deusa: “Eu sou a luz. Eu sou a luz do sol e da lua; eu sou o ar que anima todos os seres”. Este foi o embrião que mais tarde se desenvolveu na adoração à Mãe. Na adoração à Mãe não se faz diferença entre pai e mãe. A primeira idéia que se depreende é a idéia da energia – Eu sou o poder que reside em todos os seres.
O bebê é corajoso. Ele prossegue até se tornar um homem de poder. A idéia de bem e mal no início era indiferenciada, não havia ainda sido desenvolvida. Uma consciência em desenvolvimento tem o poder como sua idéia principal. Resistência e esforço a cada passo são a lei. Nós somos o resultado dessas duas coisas, energia e resistência, poder interno e externo. Cada átomo está criando e resistindo a todos os pensamentos na mente. Tudo o que nós vemos e conhecemos não é senão o resultado dessas duas forças.
Essa idéia de Deus é algo novo. Nos hinos védicos Varuna e Indra banham os devotos com os mais preciosos presentes e bênçãos, uma idéia muito humana, mais humana que o próprio homem.
Esse é o novo princípio. Existe apenas um poder por detrás de todo o fenômeno. Poder é poder em todos os lugares, quer seja na forma do mal ou como salvador do mundo. Então essa é a nova idéia. A velha idéia era homem e Deus. E aqui está a primeira abertura da idéia de um poder universal.
“Eu estico os arcos de Rudra quando Ele deseja destruir o mal” (Rig Veda, X. 125, Devi-Sukta).
Logo no começo do Bhagavad Gita encontramos (IX, 19, também X. 4-5): “Ó Arjuna, Eu sou a existência e a não-existência, Eu sou o bem e o mal, Eu sou o poder dos santos, eu sou o poder dos perversos.” Mas logo, aquele que fala remenda a verdade e essa idéia adormece. Eu sou o poder no bem enquanto se executam as boas obras.
Na religião da Pérsia, havia a idéia de Satã, mas na Índia não existe nenhum conceito de Satã. Mais tarde os livros começaram a trazer esta nova idéia. O mal existe e não há como se esquivar desse fato. O universo é um fato; e se ele é um fato, ele é uma grande mistura do bem e do mal. Quem quer que governe deve governar sobre o bem e o mal. Se esse poder nos faz viver, esse mesmo poder nos faz morrer. O riso e a lágrima são parentes, e existem mais lágrimas do que risos no mundo. Quem fez as flores, quem fez os Himalaias? – um Deus muito bom. Quem fez meus pecados e minhas fraquezas? – Karma, Satã, ser. O resultado é um universo manco e naturalmente o Deus do universo é um Deus manco.
A vista da absoluta separação entre o bem e o mal, como duas realidades com existências apartadas, nos torna antipáticos, de corações embrutecidos. A boa mulher repudia a prostituta. Por quê? Ela pode ser infinitamente melhor que você em muitos aspectos. Esta visão traz um ciúme e um ódio eterno no mundo, eternas barreiras entre homem e homem, entre o homem bom e aquele comparativamente menos bom ou mesmo mau. Essa visão brutal é puro mal, pior do que o próprio mal. Bem e mal não tem existências separadas, mas existe uma evolução do bem, e aquilo que é menos bom nós chamamos mal.
Alguns são santos, outros pecadores. O sol brilha sobre o bem e o mal da mesma forma. Existe alguma distinção para ele?
A velha idéia da paternidade de Deus está conectada com a doce noção de um Deus responsável pela felicidade. Nós queremos negar os fatos. O mal é não-existente, é zero. O “Eu” é o mal e existe demais. Sou eu um “zero”?. Todos os dias tento me ver assim e falho. Todas essas idéias são tentativas de se esquivar do mal, mas nós temos que encará-lo. Encarar o todo! Por acaso eu assinei algum contrato de amar a Deus apenas parcialmente, quando ele me dá felicidade e aquilo que é bom e não quando ele me apresenta a infelicidade e o mal?
A luz sob a qual uma pessoa falsifica uma assinatura e uma outra assina um cheque de milhares de dólares para mitigar a fome, brilha sobre ambos, não conhece nenhuma diferença. A luz não conhece o mal – você e eu fazemos dela algo bom ou mal.
Esta idéia deve ter um novo nome. Ela é chamada Mãe, porque num sentido literal ela teve início há muito tempo atrás com uma escritora sendo elevada à categoria de deusa. Então veio o Sânkhya, e com ele toda a energia é feminina. O imã está imóvel e as limalhas de ferro estão ativas.
O mais elevado de todos os papéis femininos na India é o da mãe, mais elevado que o de esposa. Esposa e filhos podem abandonar um homem, mas sua mãe nunca o abandona. A mãe o ama da mesma forma ou talvez até um pouco mais. A mãe representa o amor transparente que não conhece troca, o amor que nunca morre. Quem pode ter tal amor? – somente a mãe, não o filho, nem a filha ou a esposa.
“Eu sou o Poder que se manifesta em todos os lugares”, diz a Mãe – É Ela quem está criando este universo, e é Ela quem em seguida o destruirá. Desnecessário dizer que a destruição é apenas o começo da criação. O pico de um monte é apenas o início de um vale.
Seja corajoso, encare os fatos como fatos. Não julgue o universo pelos seus males. Males são males. E daí?
Afinal de contas, tudo não passa de um jogo da Mãe. Nada muito sério. O que poderia mover a Toda Poderosa? O que fez a Mãe criar o universo? Ela poderia não ter nenhuma meta. Porquê? Porque a meta é algo que ainda não foi atingido. Por que, então, existe a criação? Apenas por diversão. Nós nos esquecemos disto e começamos a brigar e a sofrer a infelicidade. Nós somos os companheiros de jogos da Mãe.
Olhe a tortura que a mãe suporta para criar o bebê. Será que ela desfruta disto? Certamente. Jejuando e rezando e vigiando. Ela a ama mais do que a qualquer outra coisa. Porquê? Porque não existe egoísmo.
O prazer virá – bom: quem o proíbe? A dor virá – dê as boas vindas a ela também. Um mosquito estava pousado sobre o chifre de um touro; então sua consciência o incomodou e ele disse: “Sr. Touro, eu estou pousado no seu chifre há um bom tempo. Talvez eu o esteja incomodando. Desculpe-me, eu irei embora.” Mas o touro respondeu, “Oh, não, absolutamente! Traga toda a sua família e vivam todos no meu chifre; que mal vocês podem me fazer?”
Por que não podemos dizer a mesma coisa para a infelicidade? Ser corajoso é ter fé na Mãe!
“Eu sou a Vida, Eu sou a Morte”. Ela é aquela cuja sombra é a vida e a morte. Ela é o prazer em todos os prazeres. Ela é a infelicidade em toda a infelicidade. Se a vida vem, é a Mãe; se a morte vem, é a Mãe. Se o paraíso vier, é Ela. Se vier o inferno, ali está a Mãe. Mergulhe nEla. Nós não temos nem fé, nem paciência para ver isso. Nós confiamos no homem da rua, mas existe um ser neste universo em quem nunca confiamos. E esse é Deus. Nós confiamos nEle quando ele funciona a nosso favor. Mas chegará o momento quando, golpe após golpe, a mente auto-suficiente morrerá. Em tudo o que fazemos, a serpente do ego está se elevando. Somos felizes por existirem tantos espinhos no caminho, porque eles ferem a serpente.
Por último virá a auto-entrega. Só então seremos capazes de nos entregar à Mãe. Se a infelicidade chega, que seja bem-vinda. Se a felicidade chega, que seja bem-vinda. Só assim, quando chegarmos a esse amor, tudo o que é torto se endireitará. O brahmin, o pária e o cachorro serão vistos da mesma forma. Até que amemos o universo com a mesma visão, com um amor imparcial e imortal, estaremos sempre perdendo. Mas então tudo haverá desaparecido e veremos em tudo a mesma infinita e eterna Mãe.
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