sexta-feira, março 10, 2006

Sarasvati



Como post de reinauguração do Água Potável resolvi colocar um artigo sobre a deusa indiana Sarasvati. Desde que eu comecei a participar de listas de discussão na rede, e adotei seu nome como nick, essa deusa fantástica vem me acompanhando, e chegou a hora de eu prestar-lhe uma homenagem. Em breve colocarei mais artigos sobre a mitologia indiana, além de outros assuntos. Espero que gostem, comentem e voltem sempre para visitar!

Sarasvati

A grande deusa é, sem dúvida, uma deidade de força e poder. Mas foi devido à sua benevolência e gentileza em relação aos desejos dos devotos que elas surgiram na Índia. Este papel da deusa que realiza desejos é presente até hoje, mas nos antigos hinos sagrados (Veda) esse aspecto já se manifestava.

Sarasvati é uma das poucas deusas dos Vedas que conseguiu manter sua importância até os dias de hoje. Desde os tempos antigos ela possui três papéis principais: como um rio, como Vak (palavra), e como uma deusa.

Nos Vedas, suas características e atributos são associados com o poderoso rio Sarasvati. Ela é o mais antigo exemplo de uma deusa associada a um rio na tradição indiana. Em um sentido simbólico ela sugere a sacralidade inerente nos rios ou na água em geral. O simbolismo da água é rico e complexo em todas as religiões do mundo, e há duas associações típicas importantes nas descrições védicas de Sarasvati. Primeiramente, ela é reconhecida por conferir generosidade, fertilidade e riquezas. Suas águas fertilizam a terra, para que esta possa produzir. Em segundo lugar, Sarasvati representa pureza, como a água, principalmente água corrente. Indica-se freqüentemente no Vedas que as margens de Sarasvati eram sagradas para finalidades rituais. Isto sugere também os poderes purificadores do rio.

Uma outra associação particular com rios é a de cruzar-se do mundo da ignorância e escravidão à outra margem, que representa o mundo da iluminação ou da liberdade. O rio nesta metáfora representa o estado da transição, o período do nascimento, em que o viajante espiritual se submete a uma metamorfose crucial. O rio representa um grande poder purificador no qual o peregrino afoga sua antiga identidade e nasce novamente, livre e iluminado.

Gostaria de compartilhar com vocês uma lenda interessante do rio Sarasvati:

Uma vez o celebrado sábio védico Vasishtha estava praticando penitência nas margens do rio Sarasvati. De repente, o guerreiro que se tornou santo Vishvamitra, um inimigo declarado de Vasishtha, apareceu no lugar e disse à ela: ‘Inunde e traga-me Vasishtha flutuando em suas ondas.’ Sarasvati hesitou por um instante, mas vendo que Vishvamitra estava determinado, ela invadiu suas margens onde Vasishtha meditava. Vishvamitra ficou extremamente agradecido. Mas Sarasvati não parou por aí. Ela inundou em direção ao leste, com Vasishtha na crista de suas ondas. Vishvamitra, percebendo que sua intenção era proteger Vasishtha ao invés de feri-lo, ficou indignado e amaldiçoou Sarasvati, transformado-a em um rio de sangue.

Quando os sábios mendicantes, que vivam em solidão em suas margens, foram para o banho, eles ficaram chocados ao encontrar a correnteza inundada de sangue. Sarasvati suplicou a eles: ‘Eu era um rio de água pura. Mas o sábio Vishvamitra ordenou-me que trouxesse seu inimigo, o bom sábio Vasishtha, flutuando para ele. Eu percebi a maldade, mas estava com medo da ira de Vishvamitra. Então eu carreguei Vasishtha para longe de onde ele estava sentado, mas ao invés de entregar o inocente sábio ao seu inimigo, eu o levei para um lugar seguro. Vishvamitra percebeu minha intenção e me amaldiçoou. Estou me sentindo suja e humilhada. Vocês, eremitas, não podem limpar minhas águas e restaurar minha pureza?’

‘Nós certamente podemos e vamos fazer isso,’ disseram os adoráveis eremitas, que foram tocados pela coragem da deusa. Então, através de seus poderes mágicos, Sarasvati readquiriu sua pureza e se tornou novamente um rio circulando água. É por isso que ela também é conhecida como Shonapunya, do sânscrito ‘aquela purificada do sangue’.

A idéia de um rio de sangue pode ser interpretada como um símbolo do fluxo sanguíneo feminino, principalmente porque Sarasvati é conhecida por ser uma correnteza contínua que purifica e fertiliza a Terra.

Numa literatura védica posterior, ela é a deusa da palavra, conhecida como Vak. A importância da palavra no hinduísmo é antiga e central. Todo o processo criativo está presente na sílaba OM, e a idéia da criação proceder de shabda-brahman (a realidade final na forma de som) é freqüentemente mencionada nos textos antigos. Um mantra também, que pode ser constituído de palavras ou sons, possui grande poder. Na verdade, o mantra de uma determinada deidade é equivalente à própria deidade. Pronunciar um mantra é fazer a deidade presente. O som contém uma qualidade potente, e essa qualidade é incorporada em Sarasvati, a Deusa da palavra.

Como a incorporação da palavra, Sarasvati está presente em qualquer lugar em que a palavra exista. E por isso ela é associada com o melhor da cultura humana: poesia, literatura, rituais sagrados, e comunicação entre indivíduos.

Até hoje, quando um bebê nasce, as avós fazem uma estrela de cinco pontas chamada ‘o sinal de Sarasvati’ na língua do recém nascido com mel. A língua, o órgão da palavra, deve ser presa à estrela de Sarasvati bem cedo.

Como Sarasvati, a deusa, sua identidade não é tão nebulosa quanto Vak (palavra). Há claras descrições de sua forma, vestimentas, ornamentos e montaria, juntamente com os objetos aos quais ela é relacionada. Ela é sempre representada com uma beleza extrema, pele clara, com quatro braços, sempre jovem e graciosa. Ela está sentada em uma lótus, acompanhada de seu cisne, e carrega um alaúde (Veena) descansando em seu seio. Em suas mãos ela leva um rosário, um livro, e um pote de água. O livro a associa com as ciências e aprendizado no geral. O alaúde liga-a às artes, principalmente música, e o rosário e o pote de água a associam com as ciências espirituais e ritos religiosos. Ela está vestida de branco e azul, uma reminiscência de sua forma como rio. Assim como Lakshmi, e diferentemente de Durga ou Kali, ela não traz consigo nenhuma arma.

Sua cor é branca, a cor da paz. Suas roupas, o lótus onde está sentada, e também o cisne são brancos. Nada como a nudez dramática e ensangüentada de Kali, ou o ofuscante vermelho e dourado de Lakshmi. Seu manto e sua aparência mostram serenidade e uma total falta de artifícios.

As lendas dizem que ela brotou da testa de seu pai, Brahma, assim como a deusa grega Atena, que nasceu da cabeça de seu pai, Zeus. Brahma desejou-a assim que olhou para essa linda mulher, mesmo ela sendo sua filha. Sarasvati não gostou das atenções amorosas desse velho deus e continuou se movendo, mas para qualquer lugar que fosse, Brahma fazia crescer uma cabeça em sua direção para vê-la melhor. Dessa maneira, Brahma ficou com quatro faces nos quatro lados de seu pescoço e até uma cabeça no topo das quatro, para que ela não pudesse escapar movendo-se para cima. Mas Sarasvati continuou iludindo-o.

Brahma estava nervoso. Ele, sendo o Criador, também era poderoso. Eu não sei como, mas as lendas afirmam que ele conseguiu, de alguma maneira, casar com essa moça evasiva, e criou através de sua mente os quatro Vedas. Algumas tradições contam que Brahma descobriu que sua filha-esposa era muito reservada e ausente para seu gosto. Ele tinha organizado um grande sacrifício de fogo, onde sua esposa deveria aparecer ao seu lado. Ele avisou repetidamente a Sarasvati que não demorasse muito para se arrumar para que não perdessem o momento auspicioso. Ela deve, ele disse, tomar seu tradicional lugar a sua esquerda, pontualmente. Mas Sarasvati agiu com seu característico capricho em relação às ordens do pai. Ela se demorou tanto que ao momento passou, sem o supremo casal junto para fazer a oferenda ao Deus Fogo como homem e mulher. Quando Sarasvati finalmente chegou, Brahma estava pálido. Ele a expulsou e colocou em seu lugar a filha de um sábio, Gayatri.

Sarasvati, apesar de casada, nunca apreciou a felicidade doméstica como Durga ou Lakshmi. De acordo com a maioria dos mitos, ela não teve filhos, possuía um temperamento explosivo, era facilmente provocada e um tanto quanto briguenta. Ela, entre todas as deusas, é descrita como tendo vontade própria e não era muito amável com os deuses masculinos.

Como a filha renegada e esposa afastada, Sarasvati viveu perpetuamente num exílio que ela mesma se impôs. Ela focalizou sua calma, meditou serenamente sobre as experiências do passado. A capacidade de recordar sem raiva ou ressentimento é o maior presente de Sarasvati a seus filhos: escritores, músicos e criadores de várias formas de arte. Todos eles lutaram com a tradição, mas sua luta foi racional, não emocional. Sem se cortar o cordão umbilical, nenhum novo início inovativo pode ser feito, seja criando ou procriando. Essa é a mensagem de Sarasvati.

O olhar irônico de Sarasvati, podem ter certeza, observa a luta de Kali por poder contra os demônios masculinos e os subterfúgios de Lakshmi no mundo masculino de poder e plenitude. Mas ela se mantém uma testemunha, uma historiadora apaixonada. Ela é a única que acredita na futilidade de todos os tipos de guerra e armadilhas da riqueza.

É de se compreender que uma Deusa como ela possa ser venerada por pessoas humildes e donas-de-casa, mas não amada e idolatrada como Lakshmi, ou até mesmo temida e reverenciada como Shakti. Sarasvati continua sendo a deusa asceta imaculada, para quem nenhum templo é construído e que não oferece nada além de conhecimento, nada de proteção ou riquezas.

(Esse texto é uma versão de 'Lakshmi and Saraswati - Tales in Mythology and Art', escrito por Nitin Kumar e publicado em dezembro de 2000)